Futuro do Pretérito

Há um ano atrás, a segunda-feira tinha tudo pra ser um dia comum de trabalho... mas não foi.
Há um ano atrás, eu escrevi isto:

Futuro do Pretérito

Conheci um rapaz meio sério que não me dava nem bom dia nem me dirigia o olhar nas primeiras vezes que o vi, apesar de ter aberto a porta do corredor pra mim uma vez. Não fomos apresentados logo. Quando eu cheguei, ele estava de férias e quando voltou simplesmente ninguém nos apresentou. Ele não tinha muitos amigos. Os meses foram passando, nos cruzávamos no corredor de vez em quando, e eu sempre esperava o olhar dele, mas ele era resistente. Passou mais um tempo e ele ficou ausente, não sei, achei que estivesse de férias de novo. Até que um dia numa reunião semanal, fomos todos informados que ele, ele mesmo, estava internado numa clínica para depressivos. Estava longe de casa há 7 anos e pelo jeito não tinha conseguido se adaptar muito bem assim, estava tendo problemas. E problemas da cabeça tem que tratar. Semanas depois fiquei sabendo que ele já estava em casa, sendo ajudado por um amigo, mas ainda não estava indo trabalhar. O gerente dele me convidou a um jantar num domingo na casa dele, disse que ia convidá-lo também, e eu - nas palavras dele - poderia compartilhar um pouco minha alegria com ele e fazê-lo se distrair dos pensamentos ruins que insistiam em invadir sua cabeça. Aceitei na mesma hora.

Antes de acontecer o jantar, fui à sala dele, no trabalho, e desisti de esperar alguém nos apresentar. Disse que era eu a pessoa que ia jantar com ele, com o chefe dele e a esposa no domingo. Ele apertou minha mão e só disse "prazer em conhecê-la". Mais dias passaram e naquela semana, na semana do jantar, eu tive uma crise de torcicolo como jamais vista, me mexia feito um robô. Não trabalhei quinta a tarde nem sexta o dia inteiro. O jantar era domingo próximo. Eu estava tão mal que cancelei compromissos da sexta, do sábado, mas o do domingo eu não cancelei. Não podia. Queria ir mesmo com a tal dor no pescoço.

Passei o fim de semana em casa com bolsa de água quente no pescoço, passando Perskindol e tomando anti-inflamatório. No domingo, meu pescoço ainda não estava bom, e chovia muito, mas eu não deixei de ir ao jantar. Marcamos de nos encontrar e de lá fomos à casa do chefe. Lá, estava a esposa e a bebê. Sentei no sofá, na outra poltrona sentou ele, o chefe foi fazer churrasco lá fora aproveitando que a chuva tinha dado uma trégua. E ficamos na sala conversando e brincando com a bebê. Fizemos perguntas de praxe um ao outro. O vi sorrir, ouvi sua voz e fiquei feliz de estar ali.

Sentamos à mesa, jantamos carne de cavalo, de vitello e de vaca com batatas e salada. Comemos muito, comemos uma torta de chocolate de sobremesa. Permanecemos sentados à mesa por horas, conversamos sobre tudo, e de vez em quando ele fazia confissões que estava melhor e me parecia uma pessoa normal, afinal quem não tem problemas? De volta ao trabalho, cruzei com ele algumas vezes, ele só estava trabalhando meio expediente, e na semana passada, na sala dele, dei de cara com uma caixona de biscoitos prussiens com açúcar que eram uma de-lí-cia. Me disseram que tinha sido ele que havia trazido pra todo mundo e deixou ali pra quem quisesse. pegar Roubei vários biscoitos durante dias e na quinta-feira falei com ele que aqueles biscoitos eram muito bons. Ele me disse que estavam em promoção no Coop aqui do lado. Na sexta-feira, saí do trabalho e passei lá, só tinha o último pacote do mesmo biscoito, ainda na promoção, na prateleira e eu levei. Cheguei em casa, abri na mesma hora e comi mais uns. Comi no sábado, comi no domingo. Na segunda-feira, levei ainda o pacote pro trabalho pra compartilhar com meus colegas de sala, assim como ele havia feito, e planejava ir lá brincar com ele e dizer que estava o imitando. Mas, infelizmente, naquela segunda-feira cinzenta e fria, a mesa dele estava vazia.... E não ia mais ser ocupada por ele, pois ele já não estava mais entre nós....

Respirei rápido. Fiquei muito perturbada. Não consegui me conter.... Rebobinei os momentos que o vi me ignorando nos corredores e depois um rapaz tão doce tentando sobreviver nesse mundo confuso e conturbado. Não me aguentei, chorei muito. Constatei que aquele domingo, aquele fim de semana do jantar na casa do chefe, tinha sido seu último fim de semana vivo. Seus últimos sorrisos e suas últimas refeições. Fui uma das últimas pessoas que ele conheceu.

Sei que não é minha culpa mas não deixo de pensar que talvez se eu tivesse o mantido ocupado no fim de semana seguinte, ele tivesse sobrevivido a mais uma semana. E a cada semana talvez tivesse mais tempo para curar suas perturbações, seus medos e inseguranças, suas tristezas e sensações ruins. Talvez se eu tivesse perguntado o que ele ia fazer no próximo fim de semana e o tivesse encontrado, talvez aquilo o tivesse impedido de acabar com a própria vida. Talvez se eu tivesse tirado uma foto, talvez aquela foto espantasse o sentimento amedrontador de que ele estava só nesse mundo, e tivesse mais paciência pra ver o que ainda teria pra acontecer mais adiante em sua vida. Talvez se eu não tivesse esperado até sexta-feira pra comprar o biscoito, teria dado tempo pra ele ver que eu fiz o mesmo que ele fez para com seus colegas de trabalho, que eu "aprendi" aquilo com ele e que ele tinha coisas valiosas pra mostrar, pra ensinar. Sei lá... 

Mas ele não esperou. E eu? E agora como é que eu fico? Bem, eu vou respirar fundo e tentar continuar. Mantê-lo na lembrança e aprender alguma coisa com isso. Lembrar dos meus próprios momentos de fraqueza. Eu? Eu vou dar valor por não ter jogado tudo pro alto quando as dificuldades apareceram, por ter continuado, por ter tentado, por estar ainda tentando e suportando as indiferenças, as injustiças, o não certo. Por ter sido forte, coisa que ele não foi. Eu? Eu vou esperar que ele tenha partido pra outro mundo mais calmo que este, mais terno e menos cheio de turbulências que podem fazer um ir à loucura a ponto de acabar com a própria vida, quanta coragem... Eu? Eu vou rezar. Porque me conforta e tenho fé que o conforte também. Eu vou me esforçar pra aprender com isto. Eu? Eu vou viver! Viva! Uma próxima oportunidade pode não chegar, e o momento poderá ter sido perdido para sempre.


Dedicado a Craig Peirson.

Marcadores: , ,