Seis mil anos de Istanbul

Somente. A cidade por onde tantos povos atravessaram, com tantas denominações e tantos títulos. A cidade muçulmana mais descolada do mundo, a mais desenvolvida, a mais espetacular, a mais interessante. Tudo verdade. Séculos de história, sede de três poderosos impérios - Romano, Bizantino e Otomano. Não importa o que voce já tenha conhecido do mundo, Istanbul vai te impressionar (*).
A localização de Istanbul é perfeitamente estratégica, com uma perna na Europa e outra na Ásia, controlando assim o Estreito de Bósforo, único canal entre o Mar Negro e o Mediterrâneo. Por isso faz tanto sentido o local ter sido cobiçado por tantos povos ao longo da história, pois era perfeito para rotas comerciais. Os povos que dominaram a região foram vários: lídios, persas, atenienses, macedônios, romanos. Até 330 d.C., Istanbul se chamava Bizâncio, cidade da Grécia antiga. Sob domínio do Império Romano, Bizâncio foi palco de conflitos e golpes com o objetivo de recuperar sua independência.
Quando Constantino se tornou o imperador romano, converteu-se ao cristianismo e os romanos adotaram Bizâncio como a nova capital do império. Ao vencer rivais, Constantino foi declarado o único Augusto do Império Romano, a maior majestade do momento com poderes incalculáveis. Bizâncio passou por períodos de restauração de palácios, novas construções e mudou o nome para Constantinopla, em homenagem a seu imperador.
Mas o Império Romano se dividiu em dois por volta de 395 d.C., e Roma passou a ser a sede do Império Ocidental e Constantinopla sede do Império Oriental. Cinco vezes maior que a antiga Bizâncio, Constantinopla crescia e era fortificada com muralhas que se estendiam e a cidade se expandia sem limites, nascia o Império Bizantino.
O apogeu do Império Bizantino aconteceu sob o reinado de Justiniano, quando muitos territórios que haviam sido perdidos pelos romanos foram reconquistados, e as fronteiras do Império foram redefinidas- iam da Pérsia à Espanha e do Danúbio ao Egito. Aproveitando as riquezas acumuladas ao longo de batalhas vitoriosas, Justiniano ordenou a realização de grandes obras e monumentos, como a Basílica de Haghia Sophia, completada em 537 d.C., um dos maiores feitos arquitetônicos de todos os tempos.
Haghia Sophia
Aya Sofya é tão significante para os muçulmanos quanto é para os cristãos. Foi proclamada como museu em 1934 e permanece até hoje. O lado de fora não tem nada de atraente, mas o interior da basílica é magnífico. Apesar de terremotos e restaurações custeados pela Unesco, o design é muito ambicioso e permanece com partes originais como os mosaicos da época das Cruzadas.
Passei horas na Haghia Sophia e ainda acho que poderia ter passado mais...

Mas o período de glória de Justiniano foi sucedido por invasões árabes e a influência islã teria um grande impacto sob os bizantinos. Concílios para autorizar o culto a imagens ou não foram sucedidos pela Dinastia Macedônica e disputas de poder entre as Igrejas latina e grega, que se tornaram ainda mais acirradas com o coroamente de Carlos Magno como Imperador do Sagrado Império Romano em 800 d.C.

Costantinopla perdeu aliados do Ocidente e tornou-se vulnerável. Em paralelo, já durava séculos o movimento de tribos nômades que saíam da Mongólia e seguiam rumo ao Oeste, em busca de terras férteis para seus rebanhos. Dentre essas tribos nômades da Ásia Central, havia povos vigorosos, que ficaram conhecidos como Turcos. Os Turcos, antes denominados seldjúcidas, liderados pelo chefe do clâ dos seldjuk, confrontaram os árabes em direção a Pérsia e foram derrotados, embora foram assimilando gradualmente a cultura do inimigo. Converteram-se ao Islamismo e foram sendo incorporados aos exércitos árabes. Apesar de serem escravos, tinham status superior aos demais soldados. O Império Seldjuk começou a se desintegrar com a invasão dos mongóis e passou por um período tumultuado.

No início do século XIV, a Anatólia Ocidental (parte asiática da Turquia) encontrava-se dividida em diversos principados, dentre eles o dos Osmanlis. Segundo a lenda, Ertoghrul, o fundador da Dinastia Otomana (ou Osmanli) era o chefe de uma tribo nômade que avançava sobre a Ásia Menor (Anatólia), com cerca de 400 cavaleiros, quando se deparou com uma batalha entre os seldjúcidas e hordas mongóis. Vendo que os seldjúcidas perdiam, resolveu apoiá-los, apenas pelo gesto nobre de ajudar os mais fracos. Em sinal de gratidão, o sultão Seldjuk ofereceu-lhes terras de cultivo, o que levou a tribo nômade a criar raízes ali. Da lendária pequena tribo de Ertoghrul surgiria o todo poderoso império dos Osmanlis ou Otomanos, que perduraria por mais de seis séculos!
Em 1326 o primeiro sultão do Império Otomano iniciou a consolidação do Império, demonstrando tolerância para com os cristãos e deixando a conversão ao islamismo voluntária. O Sultão era onipotente e dono de tudo e de todos. A partir daí, 6 sultões seguiram no comando, e após 1517 os sultões otomanos somaram ao seu poder secular o poder religioso ao se tornarem califas. Califado é a forma islâmica de governo que representa a unidade e liderança política do mundo islâmico.

Os sultões do Império Otomano desejavam a conquista de Constantinopla e reinado após reinado, os preparativos ganhavam forças para esse feitio. Até que chegou o dia e em 29 de maio de 1453, diz a lenda que Constantino morreu lutando ao pé das muralhas, embora seu corpo jamais tenha sido encontrado. Era o último imperador bizantino. O sultão Mehmet II fez sua entrada triunfal na cidade rumo a Haghia Sophia e numa cerimônia solene agradeceu a Alá pela vitória. Era o início do Império Otomano.

Os Otomanos deixaram muitas marcas em Istanbul. A Mesquita Sultanahmet, ou a Mesquita Azul, é uma mesquita típica clássica otomana. Os bizantinos já haviam construído a mesquita, mas em 1606, o sultão Ahmet I quis uma mesquita maior e mais imponente, até mesmo que a igreja de Santa Sofia. Eis o resultado:
Blue Mosque
A Mesquita Azul é enorme! Linda! Magnífica! De tirar o fôlego! Em volta tem uma praça e muitos vendedores de qualquer coisa ficam circulando ali. Para entrar, aquele esquema de tirar o sapato ou sandália, cobrir os ombros, as pernas, as mais religiosas cobrem as cabeças em sinal de respeito. A mesquita é o templo dos muçulmanos, é destinada única e exclusivamente às orações e pregações. A Mesquita Azul é a única em Istanbul que possui 6 minaretes (torres do lado de fora) que servem para que o arauto (muezzin) possa convocar os fiéis para as preces do dia. Não tem bancos nem cadeiras, mulheres ficam em áreas separadas de homens, para que possam se ajoelhar e orar como prega o Islão.

Lá dentro, são 21.043 azulejos pintados com motivos diversos. Do lado de fora, há várias torneiras para que os fiéis se lavem, se limpem e se purifiquem antes de entrar na mesquita e iniciar suas orações.

Istanbul tem mais de 3 mil mesquitas para acolher os fiéis que rezam 5 vezes por dia: alvorada, meio dia, a tarde, ao por do sol e uma hora e quinza minutos depois da penúltima reza.

Muitos sultões e califas e muitas histórias aconteceram durante o domínio do Império Otomano, obviamente. Muitos progressos e muitas conquistas. Mas eu não vou escrever tudo aqui, porque não dá ne.

Vou pular para quando as extravagâncias dos sultões levaram a Turquia à bancarrota. Sim...

Para impressionar visitantes da realeza estrangeira, o sultão organizava festas no palácio Dolmabahçe (que eu mostrarei no próximo post, prometo), sangrando os cofres do Império para bancar muito luxo e suntuosidades desnecessárias. A crise econômica se agravava e a população comemorava promessas de novos tempos.
Era dezembro de 1876. Para acalmar os ânimos, Abdül Hamit II decidiu aprovar a Primeira Constituição e a ciração de um Parlamento Turco. No mesmo período, a Turquia entrou numa guerra com a Rússia por questões territoriais, e foi obrigada a pedir ajuda a rainha Vitória, da Inglaterra, o que deu certo, e o tratado resultante entre turcos e russos (Tratado de San Stefano) terminou desmembrando o Império Otomano na Europa. O Tratado gerou grande repercusão e o Congresso de Berlim definiu um novo acordo, anulando as deliberações anteriores. A administração das dívidas da Turquia ficaram sendo responsabilidade da Europa  e a atuação deste conselho resultou na modernização das indústrias e o cenário voltou a ficar mais estável para a Turquia, atraindo investimentos, empregos e reformas. Apesar de a Turquia ter ainda perdido territórios como a Argélia e a Tunísia e seu poder secular se esvair, a Constituição foi restaurada sob pressão e uma onda de otimismo varreu o Império. O sultão perdia o poder absoluto. Novos conflitos seguiram nos Balcãs, guerras declaradas contra a Turquia e a desastrosa decisão de aliança com a Alemanha na 1a Guerra Mundial com a esperança de recuperar terras perdidas nos Balcãs e Oriente Médio trouxe novas ruínas ao Império Otomano. Conflitos seguintes com a Grécia resultaram na extinção do sultanato e com o Tratado de Lausanne, a paz foi selada entre Grécia e Turquia, que foi reconhecida como nação soberana.
Eu tentei resumir. Tentei. Mas a história é muito cheia de detalhes e pontos chaves, não dá pra deixar passar. O background é muito pesado e rico. Ir a Istanbul sem conhecer um pouquinho do que se passou ali antes não é a mesma coisa. Claro, tem paisagens fantásticas, depois de Paris e cidades suíças, Istanbul está no topo da lista de cidades mais fotogênicas que eu já tive a honra de pisar. Mas ir lá conhecendo a história, os fatos, os costumes e os hábitos é uma sensação especial. Eu admito, é difícil acompanhar a bagagem histórica de todo lugar que se visita, mas vá por mim, o esforço é recompensado quando voce vive a viagem.

Foi apenas um fim de semana para constatar os seis mil anos de história de Istanbul. O que eu vi não chega nem perto do que se tem lá pra ver. Ah, se eu vivesse só pra isso.

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