Mother Russia

Uma viagem a Rússia por si só já admira alguém. Até a pessoa com o menor dos conhecimentos há de se espantar ao ouvir "Russia". A Rússia é longe, é grande, fala russo, tem outro alfabeto, tem fama de ser fria com invernos rigorosos, muita neve, e constantemente ouvimos sobre ela nos jornais e notícias pelo mundo com referências sinistras. É tudo de excêntrico e diferente do que podemos estar acostumados, quando vivemos no Brasil, ou aqui na Europa mesmo. Pra você ver que mesmo morando aqui na Europa, com um vôo somente de 3 horas entre Zurique e São Petersburgo, mesmo assim, as pessoas ainda se admiram quando ouvem falar que fomos turistar na Rússia. A Rússia se diferencia e se destaca da nossa cultura aqui do ocidente, do latino, e até mesmo do anglo-saxão. 
Praça Vermelha, Moscou
O povo originado da raça eslava desperta acima de tudo curiosidade no resto do mundo. Há anos o resto do mundo tenta meio que inconscientemente desvendar a Rússia. Ora um país que faz parte de dois continentes (Europa e Ásia), com proporções continentais, o maior país em extensão territorial do mundo que ocupa nada menos que 1/8 da área habitada na Terra, o 9. país pais populoso do mundo com quase 145 milhões de habitantes, com nada menos que 11 fuso horários diferentes, não dá pra passar batido. Um país que foi regido por impérios que definiram a essência da sua cultura, foi palco de revoluções e formas de governo centralistas democratas, ideologias socialistas que marcaram e impactaram a história do mundo inteiro e terminaram dissolvidas pela evolução de outros sistemas.


Uma terra de muita riqueza e indescritível pobreza, tiranos cruéis e mentes brilhantes, balets lindíssimos e monstruosidades industriais. Todas essas verdades coexistem na Rússia e o país é tão grande que parece mais fácil tentar entende-lo como uma coleção de países. A Rússia ocidental que faz fronteira com a Europa (Finlândia, Noruega, Ucrânia, etc.), mesmo que seja ainda também o leste Europeu, é a Rússia "europeia" com costumes mais próximos dos nossos. E a Rússia do lado de lá que é a Rússia do leste, a Rússia siberiana, onde é menos explorada, menos populosa e onde o frio é imperdoável.
Moscou
Tudo sobre a Rússia é monumental, inclusive a sua história turbulenta e suas façanhas culturais. Tal entendimento não vem assim tão fácil para quem está de fora. A Rússia parece meio impenetrável, única como só ela. Um mistério a ser desvendado, uma história que precisava ser aprendida em detalhes, um enigma. E tal como os mistérios costumam ser, fascina a quem se dá a chance de descobri-la. Talvez seja por aí que tenha surgido minha vontade de conhece-la, meu fascínio em descobri-la. Desde a queda da cortina de ferro no fim dos anos 80 quando o fluxo de turistas começou a aumentar na Rússia, ela vem então sendo explorada, ainda que em ritmo lento, e exposta para quem quiser ve-la. Muitos turistas vão além das capitais São Petersburgo e Moscou, se arriscando em trens siberianos para descobrir a Rússia rural e provinciana e mostra-la para o resto do mundo, ou talvez até para desmistificar suas própria ideias pre-concebidas e preconceitos. 
Moscou
Catedral de São Basilio, Moscou
O meu roteiro pela Rússia resumiu-se de: 1 semana entre São Petersburgo e Moscou com Edi, e acho que isso é o mínimo necessário para conhecer pelo menos as duas principais cidades. Como eu mencionei no post anterior, fiz tudo com guias de turismo e motoristas pre-agendados e organizados, que nos ajudaram a navegar pelas cidades e entender os fundamentos da história dos pontos que visitamos. Mas isso eu conto com detalhes nos próximos posts. Quero fazer uma introdução séria antes, porque não tem como falar de uma viagem para a Rússia sem fazer antes uma introdução, um referencial histórico, para entender de verdade o que se vê, o que se viu. Se você tiver interesse, vem comigo...
Moscou
Não tenho a pretensão de ir tão longe com isso, não vou falar de povoações pre-históricas na Rússia. Sabemos que os eslavos do leste migraram para a Rússia em algumas centenas de anos antes de Cristo. Depois daí, vikings e mongóis se estabeleceram nos arredores e a partir de 1500 o impérios dos czars é a história marcante mais definitiva que podemos comentar. Os czares eram os imperadores, título usado primeiramente por Ivan III, que proclamou-se sucessor do Império Bizantino, morto na tomada de Constantinopla (o que é hoje a Turquia). O Império Bizantino, por sua vez, não pode ser passado desapercebido, pois foi daí que firmou-se a religião cristã ortodoxa e a arquitetura única que se vê até hoje na Rússia.
Igreja do Sangue Derramado, São Petersburgo
O Império Russo comandado por czares revela uma história repleta de dramas, atrocidades, grandes feitos e riqueza de detalhes hoje ainda possíveis de serem constatados em museus, com objetos e peças desta época de muitas conquistas. História pura! O Império Russo teve na verdade sua verdadeira fundação com Ivan IV, o Terrível, que apesar de ter sido muito cruel, foi responsável pela conquista de grande extensão territorial para a Rússia e pela unificação de principados independentes que a Rússia um dia foi. 
Interior da Igreja do Sangue Derramado, São Petersburgo
Mas foi com Pedro I, o Grande, da famosa dinastia dos Romanov, uns 100 anos mais pra frente, que a Rússia prosperou mais. Pedro era fã de países como Alemanha e Holanda e introduziu muitos hábitos do ocidente para a Rússia. Construiu prédios mais modernos, reformou serviços e mais importante, recapturou a costa do Báltico dos suecos que tentavam controlar o território russo na época. Foi durante seu reinado também que São Petersburgo se tornou a capital russa, onde toda a corte russa viveu por quase 200 anos, até a revolução comunista de 1917 determinar Moscou como capital, pois os soviéticos tinham receio de deixar São Petersburgo cidade balneárea tão próxima das fronteiras como centro de tudo.
São Petersburgo
Peterhof
A segunda esposa de Pedro o Grande, Catarina, a Grande, se tornou czarina e governou a Rússia por 4 anos e mesmo tendo reinado por pouco tempo, também trouxe muitos feitos para a Rússia e é sempre fortemente lembrada na história do país. Foi também durante sua história que a Rússia viu cenas de atrocidade na sua corte: o assassinato de seu filho, a invasão e a ocupação de Napoleão e suas tropas em Moscou. Além disso, as questões pessoais da corte chamavam atenção. Catarina não gostava de seus filhos, mas adorava os netos. Deu um palácio para cada neto, e esses países estão aí para contar história. Depois de seu reinado, o império russo foi governado por diversos reinados ainda mais curtos que o seu, por diferentes czares, até chegar na era dos Alexandres, Alexandre I, II e III, também importantes para a história russa.
Hermitage, Palácio de Inverno, São Petersburgo
Interior do Hermitage, Palácio de Inverno
O último czar do império russo foi Nicolau II, até hoje criticado por não ter conseguido manter a monarquia russa em alta. Governantes provisórios tomaram o poder após a queda dos czares, mas não durou muito até Vladimir Lenin formar o Partido Social Democrata, em 1898, e a Rússia entrar anos seguintes na Primeira Guerra Mundial contra a Alemanha, e entrar em colapso econômico e político. A grande revolução socialista comandada por Lenin nacionalizou indústrias e reformou radicalmente diversos setores no país. A guerra cessou, a família dos czares foi perseguida e morta, e a partir daí o comunismo tomou conta, nascia a União Soviética, com Moscou como capital.
Kremlin, Moscou
Lenin faleceu em 1924, até hoje no Kremlin, a sede do governo russo, seu túmulo tem lugar de destaque (veja a foto abaixo), uma coisa impressionante. Aliás naquela época São Petersburgo se chamava Petrogrado. Grado em russo é lugar, e Petr vem de Pedro, o czar que mencionei acima. Lugar de Pedro. Quando Lenin morreu, a cidade mudou de nome e passou a se chamar então Leningrado: lugar de Lenin, em homenagem ao líder soviético. A cidade passou a se chamar São Petersburgo em 1991, pois a população decidiu que não fazia mais sentido chama-la de Leningrado e continuar referenciando Lenin. Então São Petersburgo remete novamente a Peter = Pedro, o Grande, e Burg vem do Alemão que quer dizer castelo. A referência do Alemão era pelo gosto que Pedro I tinha pela cultura alemã.
Túmulo do Lenin, Kremlin, Moscou
Joseph Stalin assumia o poder após a morte de Lenin e iniciava diversos planos para a industria e agricultura. Adolf Hitler, lider nazista, tentava invadir e dominar países vizinhos em 1940, 1941, o que fez Stalin estabelecer acordos sobre o controle do leste da Europa, no que resultou da invasão e controle da Polônia, que eu comentei brevemente nos posts da Polônia e de Auschwitz. Hitler não cumpriu os acordos e invadiu a União Soviética, o que resultou em severas batalhas em território russo. O fim da 2a Guerra Mundial emergiu duas superpotências mundiais: os EUA e a USSR. Os países que permaneceram comunistas após a guerra (aliás muitos deles eu já visitei e escrevi aqui no blog sobre) juraram lealdade à União Soviética, e formava-se assim então o bloco do leste. Alem disso Stalin fechou relações próximas com os governantes da China e Coreia do Norte.
Moscou
Stalin liderou a União Soviética no período pós-guerra com muitas reconstruções, e viu uma ascensão significativa no mundo ocidental, que gerou a Guerra Fria, um estado tenso entre o leste e o oeste do mundo no que diz respeito a política e militarismo. Durante esta fase não obstante, a União Soviética desenvolveu armas nucleares e fez planos para dissolver a famina pós guerra que matou tanta gente em regiões da Rússia, Moldávia e Ucrânia. Com a morte de Stalin que até hoje gera opiniões adversas, os governantes seguintes iniciaram um processo de "desestalinização", com reformas de reestruturação pelo país inteiro, enquanto países comunistas que funcionavam sob o comando da USSR suavemente dissolviam o socialismo internamente e buscavam sua independência, era o início da democracia no leste europeu.
São Petersburgo
Em 1985 eu tinha 3 anos de idade e Mikhail Gorbachev introduzia a democratização e abertura de mercados, o que levou de vez à desintegração da USSR. Boris Yeltsin assumiu posteriormente uma federação frágil e uma grande luta política entre presidente e parlamento ganhou espaço, dando margem a violência nas ruas, batalhas entre gangues de rua e Moscou era na década de 80 e 90 um lugar relativamente perigoso com tanques de guerra rodeando o Kremlin. 
Praça Vermelha, Moscou
Desde o ano 2000 então está Vladimir Putin no poder, aliás, foi substituído por 4 anos por Dmitry Medvedev, mas já está de volta ao poder russo, e a Rússia não é mais oficialmente governada por tiranos. Embora ainda hajam controvérsias, Putin é querido entre os russos. Prometeu diminuir com a corrupção e agitações étnicas, mas todos concordam que a Rússia é um país enorme e muito ainda há de ser feito. A chegada do capitalismo na Rússia trouxe progressos mas outras dificuldades e diferenças sociais ainda mais gritantes entre a Rússia europeia e a Sibéria.
Peterhof
Tríplice Entente - Mother Russia
Ainda hoje existe e eu mesma pude perceber na minha estadia por lá, que o capitalismo não é o mesmo que é visto no resto da Europa, muito menos nos EUA. Há um certo distanciamento do povo em tudo que diz respeito ao ocidente, aos EUA. A Rússia se mantém muito mas muito fiel às suas raízes, e embora pareça ser inevitável a invasão de redes e cadeias comerciais do capitalismo, eles tentam e conseguem sobreviver com um pé atrás. Quando eu estava em Moscou por exemplo, era aniversário de 868 anos da cidade, e acontecia no domingo um desfile militar. Não havia ninguém nas ruas para assistir ao desfile. Segundo a guia que me acompanhava, aquilo era herança do comunismo: o desfile era apenas para mostrar na televisão, apenas para o governo, não para o povo, não para "se mostrar". E pelo que tudo indica, o povo está ok com isso. Não obstante e em controvérsia como não poderia deixar de ser, a Rússia hoje é a número 1 no mercado de produtos de luxo, a maior exportadora de energia do mundo, sua economia tem crescido nos últimos anos, 19 das 100 pessoas mais ricas do mundo eleitas pela revista Forbes eram da Rússia. 

Não é para menos... O centro de toda a influência soviética, da riqueza dos czares, de império bizantino, toda uma era que deixou ambas material e culturalmente um legado não há de ser dissolvido assim tão facilmente. E que bom que não, o mundo está aí para ser diferente mesmo e ensinar e mostrar às pessoas sobre as diferenças, e que elas pode coexistir. A Rússia é um país complexo, aparente e literalmente gélido na superfície, mas tão único que não é a toa que é chamado de "motherland" mundo afora, a Terra Mãe. 

Mother Russia (Mamãe Rússia) é uma personificação nacional do país, que na época soviética aparecia em cartazes patrióticos, estátuas, anúncios, como no cartaz de 1914, esse aí do lado da foto, por exemplo, onde a Tríplice Entente (a aliança militar entre França, Reino Unido e Rússia) foi personificada alegoricamente. E não pára aí, Iron Maiden, The Sisters of Mercy e minha querida Renaissance têm todos uma canção chamada "Mother Russia", além de um número teatral baseado na série Doctor Who. 



Acho que essa música é tão intensa e se tivesse que escolher uma trilha sonora para representar minha viagem e minhas impressões da Rússia, não poderia ser outra música. Acho também que de introdução já está bom, não é? Esse post foi praticamente uma aula de história. Adoro. Nos próximos posts falarei mais da viagem em si e das cidades visitadas.

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