Panela cheia, e sem batuque

Eu queria dar um outro título a esse post. Pensei em "Por que os suiços se matam", mas achei meio rude. Preferi fazer uma analogia ao "batucar na panela vazia" (e fazer carnaval) que é menos chocante. Mas o tema ainda é chocante. Antes de tudo, ainda não sei qual será o resultado final desse post, então se voce não curte o assunto que é pesado, voce tem livre arbitrio para escolher outro lugar pra ir que não esse blog.

Eu to na Suiça há 2 anos e meio e ainda não parei de aprender coisas nas experiências vividas por aqui. Fiquei muito impressionada com o suicídio do colega de trabalho no meu antigo emprego há 2 anos atrás, e desde aí, me liguei nessa coisa que não é nenhum tabu por aqui. Até novembro de 2009, eu nunca tinha conhecido ninguém que tinha se matado, nem nunca ouvido falar de ninguém conhecido, nunca. Aqui, desde que isso aconteceu, o assunto foi abordado várias vezes em diversas ocasiões e eu me impressionei ainda mais em como todo mundo aqui já passou por uma experiência assim. Que conhecia alguém que se matou, ou que quase se matou, ou que tem uma opinião formada e explicações quase científicas pra justificar tudo. Típico suiço.

Com suiço voce vai conseguir conversar quase sobre tudo. São sempre muito inteligentes, centrados, mas muito frios. Arrancar uma expressão, um ápice de emoção como um olho arregalado ou alguma tristeza nos olhos é quase missão impossível. Aqui eu conheci tanta gente tão diferente, que no inicio eu achava estranho, e hoje acho normal. São diferentes do que eu era acostumada a lidar. Voce pode ate estar lá conversando esse tema com um suiço, ele ta la contando a voce a opinião dele e tudo o mais, mas daqui a pouco o assunto vai acabar e ele vai lhe tratar como se voce fosse um desconhecido na parada de ônibus. No Brasil, todo mundo se fala, se toca, conversa, ri, convida pra fazer coisas. Aqui, são muito educados, sorriem, mas é uma coisa tão linear que as vezes parece que estão em alguma espécie de estado de transe.

Com o passar do tempo morando aqui, se voce só tiver contato com suiços, provavelmente voce vai sentir falta de alguma coisa, e provavelmente também não vai saber o que é. Falta de ir mais fundo em alguma coisa. Falta de conversar bobagem, ou conversar sério. Falta de estar sempre a vontade, porque com eles constantemente é tenso e vc nao sabe se tá agindo certo, se tá agradando, se deve ficar quieto ou soltar uma piada pra quebrar o gelo. É completamente normal almoçar 6 pessoas numa mesa e elas só se falarem pra perguntar se a comida tá boa. Com o tempo, voce vai entendendo do que sente falta, mas isso voce, se voce como eu cresceu num país tropical abençoado por Deus, onde as pessoas são calorosas. As pessoas que são daqui a medida que vão crescendo vão se tornando independentes. O país provê possibilidade de voce desde cedo com um empreguinho qualquer se sustentar, e aí as pessoas se mudam, moram só, e aí começa a crescer mais ainda o problema.

Quando voce é criança aqui, voce é uma criança como outra qualquer que quer brincar, mas quando voce vai crescendo e assimilando o tratamento dos seus pais e dos adultos ao seu redor, eventualmente voce também vai se tornar a não mais calorosa das pessoas. É da cultura daqui ser assim. Quando voce sai de casa e começa a viver sua própria vida - porque aqui todo mundo sai de casa cedo - aquela falta de um relacionamento - não de marido e mulher, qualquer relação - uma coisa mais profunda, uma amizade uma coisa assim, vai eventualmente chegar em voce, mesmo sem voce saber. Porque ninguém consegue viver o tempo inteiro assim. Vêem mil pessoas na rua e não se falam. São tão educados, mas só têm uns dois amigos de verdade. Começam a enxergar mais além da sua própria vida, identificam-se com uma coisa ou outra. E botam a culpa da sociedade, do sistema.

Porque aqui se voce entra num relacionamento - agora sim de namorados, por exemplo - o primeiro ponto a ser questionado é sua profissão, seu status, sua bagagem. Pessoas boas têm bons empregos, pessoas ruins têm empregos ruins. Foi mal aí a delicadeza, mas a realidade aqui é mais ou menos essa. Por mais que sejam educados com todo mundo, no fundo, julgam, tomam atitudes racistas, fazem o outro sofrer e acham que estão ajudando alguma coisa, quando no fundo estão fortificando ainda mais essa bolha fechada, inconsciente e errada que é esse isolamento.

Almejar uma boa carreira, um bom status, uma boa condição social na vida não é fazer mal a ninguém. O mal é usar isso pra determinar quem é bom e quem é ruim e sem perceber, ser uma pobre vítima e morrer só.

Na India, as pessoas lá vivem na merda, a grande maioria numa pobreza extrema, e pergunte se eles são sozinhos e tristes? São as pessoas mais felizes que eu já vi. Falam com facilidade, não engasgam, não são nem tão educados assim militariamente como os suiços, mas quem se importa se voce vai começar a comer sem desejar bom apetite, não é verdade? Pouco importa. Eles estão lá cheio de dificuldades pra pagar o aluguel da casa, mas a casa tá cheia de gente, eles terminam sendo obrigados a lidar com outras pessoas, e isso termina forçando a trabalhar suas habilidades sociais, e aí gera-se a convivência natural.

No Brasil é parecido. Sim, tem muita malandragem, corrupção no poder, fila de banco, serviço que não funciona, mas sempre tem alguém por perto disponível pra voce conversar. Numa fila de banco, é normal voce contar sua vida inteira pra um estranho, trocar telefone, sair pra tomar uma cerveja. Aqui? Vixe. Sei nem o que dizer. Bem, não tem fila de banco pra começar ne.

Então os suiços na sua perfeição do ambiente que vivem, nunca são abordados pelos problemas, pelas dificuldades de conseguir alguma coisa, de passar por um problema sério de dinheiro porque por mais lascado que voce seja, o governo sempre vai arrumar um jeito de te ajudar. E voce mesmo lascado aqui na Suiça, voce vive confortavelmente. Então, aonde terminam indo parar os problemas? Na questão dos relacionamentos, na socialização com outras pessoas além da educação formal e do coleguismo forçado, e aí meu amigo, é problema pra Freud.

A panela deles tá sempre cheia, o fondue tem um cheiro ótimo, mas cade a batucada? Cade a alegria, cade aquele humor espontâneo? No Brasil é todo mundo ferrado, não tem nem dinheiro pra pagar as contas direito, mas aquela saidinha no sábado a noite tá garantida. Na India é a mesma coisa. Já viu um país pra ter tantas tradições, tantos festivais e tantas comemorações?

Aí vá olhar pro índice de suicídio no mundo. A Suiça é linda, as pessoas são contentes de serem suiças, mas o país está em oitavo no ranking liderado pela Coreia do Sul, onde as crianças se viciam em estudar. Brasil e India não aparecem entre os 34 primeiros. Minha gente, OITAVO! É muito. E se voce olhar os outros países na lista - Finlândia, Japão, Estônia - todos altamente desenvolvidos, e o povo não é feliz.

Eu em 2 anos e meio morando na Suiça tenho quantos amigos suiços? ... O povo não se abre, não conversa, não dá continuidade, prefere seguir regras e mais regras porque só conhece isso. E se for preciso na sua opinião, criticar quem não se adequa a elas. No Brasil voce conhece alguém, já troca telefone, marca de sair, toma uma cerveja juntos e vira melhores amigos da noite pro dia. Pode até nem manter tanto contato assim depois com a pessoa, mas aqui isso nunca ia acontecer. Aqui pra voce marcar alguma coisa com um suiço primeiro tem que ser com semanas de antecedência, e voce não pode se atrasar, claro. E voce não vai marcar de tomar uma cerveja e contar sua vida inteira, voce marca um café e fala dos seus projetos, do filme que assistiu, da diferença entre fondue e raclette. Francamente. É preciso MUITA sanidade pra não pirar nesse lugar com essas regras e essas condutas porque olha, eu já não fico tããão impressionada com a história do suicidio.

Mas também... eu tinha uma teoria antes que era assim -- aqui as pessoas são assim por causa do frio. Tanto tempo de inverno, frio e escuridão faz a pessoa ficar mais em casa, mais só e isolada. No Brasil (ou na India) país tropical, maior calor, todo mundo sai, vai pra praia e não tem como ficar chateado com o mar ne. E ai fica todo mundo feliz, mesmo de panela vazia.

Só posso imaginar como deve ser difícil pra alguém que nasça aqui crescer assim e ser são. Já vi dezenas de pessoas na rua falando sozinhas, com tiques nervoso, e hoje já nem me admiro mais. Totalmente compreensível. Eu se tivesse crescido aqui ave maria não sei não. Quando se vem pra cá adulta já e entendida das coisas leva-se um tempo pra entender também. No começo tem aquele choque, depois a longa fase de entendimento vai seguir até voce se dar conta de como as coisas funcionam no primeiro mundo. Depois de entender, ou voce se adapta, ou voce se adapta parcialmente e aguenta as consequencias. Se voce não se adaptar, voce não sobrevive. De qualquer forma, vai sofrer impacto e vai precisar de algum amortecimento pras quedas, uma válvula de escape também ajuda bastante. Ou várias delas, depende do choque.

Desde que troquei de emprego e não trabalho mais num ambiente multicultural, mas sim num ambiente dominado por suiços e alemães, estou lidando mais com eles e entendendo cada dia um pouco mais dessa cabecinha complicada. Claro, todo santo dia, horas e horas de convivência, eu tinha que tirar alguma lição. Num ambiente multicultural, existe espaço pras diferenças e existe mais tolerância também pra essas diferenças. Agora não tem mais essa boquinha não. É adapte-se ou morra. Hoje vi um cara saindo de ambulância no trabalho, e isso me motivou a escrever.

Seja como for, eu tenho pra mim que tudo é uma fase e nada é tão ruim que não possa piorar. Não sou uma pessoa pessimista, só preciso dar umas chacoalhadas de vez em quando pra não pirar também.

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